O Poder e o Desdém
O poder responde à luta com desprezo e propaganda
Perante uma greve geral, um governo responsável escuta. Um governo maduro pondera. Um governo honesto reconhece as razões do descontentamento. O que tivemos, nos dias que antecederam a mobilização nacional de 11 de dezembro, foi o contrário de tudo isso. Uma encenação cínica, onde a propaganda tomou o lugar da política e a manipulação substituiu a escuta.
De repente, surgiram números lançados como granadas: oitocentos milhões de euros, diziam, seriam perdidos num único dia de greve. A fonte? Um exercício aritmético infantil, que divide o PIB anual por 365, ignorando todas as variáveis reais da economia. O impacto da greve, nesse cálculo, é absoluto. O trabalho dos não aderentes desaparece. Os serviços mínimos não existem. A recuperação posterior é ignorada. E os salários não pagos pelos empregadores são ocultados. O que temos é uma mentira convenientemente disfarçada de objetividade estatística. Trata-se, como diria Pierre Bourdieu, de uma forma de violência simbólica. Uma manipulação que serve para deslegitimar a greve ao apresentá-la como um ato irracional contra o interesse nacional.
A seguir veio a narrativa ideológica. O Governo e os seus arautos acusaram os trabalhadores de quererem manter leis do PREC. A acusação é tão vazia quanto reveladora. O atual Código do Trabalho é de 2003. Já foi alterado dezenas de vezes, sempre no sentido da flexibilidade patronal. A única norma verdadeiramente herdada do período revolucionário ainda usada hoje é a da requisição civil, que os mesmos críticos não hesitam em aplicar quando os trabalhadores protestam. Evocar o PREC é uma forma de agitar fantasmas. Não para discutir o mérito das propostas, mas para ativar reflexos ideológicos e desviar a atenção da substância.
Substância essa que não resiste ao escrutínio democrático. Nenhuma das medidas mais graves do pacote laboral proposto constava do programa eleitoral da coligação AD. Não se anunciou o alargamento dos contratos a termo, nem a facilitação dos despedimentos, nem o enfraquecimento da contratação coletiva. O Governo governa com uma maioria formal, mas sem mandato substancial para esta reforma. A dissonância entre o prometido e o imposto transforma a legitimidade eleitoral em pretexto de governação autoritária. É uma traição ao contrato político, uma falha ética que mina a confiança pública.
A suposta abertura ao diálogo revelou-se, também, uma encenação. O anteprojeto foi lançado em pleno verão, longe do radar mediático, e apresentado como inevitável. As reuniões com os sindicatos foram marcadas por exclusões seletivas e por uma linguagem de linhas vermelhas inegociáveis. O diálogo era apenas um ritual, sem reciprocidade, sem margem para influência real. Niklas Luhmann escreveria que a legitimidade organizacional depende da percepção de justiça dos procedimentos. Aqui, a percepção é clara: um processo apressado, opaco e desrespeitoso. Não houve concertação. Houve imposição.
Para completar o quadro, tentou-se desqualificar a greve como política, ideológica ou orquestrada pela extrema-esquerda. Como se fosse possível separar o trabalho da política. Como se defender direitos laborais não fosse, por natureza, um ato político. Como se as greves de 2013, 2007 ou 1991 tivessem sido motivadas por místicas revolucionárias em vez de degradação concreta das condições de vida. Esta greve foi convocada por estruturas sindicais com orientações diversas. Reuniu apoio transversal. Incluiu sindicatos independentes. E foi apoiada até por personalidades ligadas ao próprio centro-direita. Chamar-lhe radical é uma forma de evitar o confronto com a realidade. E a realidade é esta: a reforma laboral proposta é socialmente tóxica e politicamente ilegítima.
O argumento mais insidioso, contudo, é o que defende a precariedade como estratégia de crescimento. Diz-se que contratos flexíveis geram emprego e dinamismo. Mas os dados do Eurostat mostram outra história. Em 2012, a produtividade por trabalhador em Portugal era de 76,8% da média europeia. Em 2022, era de 76,7%. Estagnada. Já os salários recuaram. E os lucros empresariais subiram significativamente. A promessa do crescimento pela desvalorização do trabalho revelou-se um embuste. Como alertam David Harvey ou Guy Standing, o modelo da precariedade permanente não gera coesão social nem inovação económica. Gera insegurança, alienação e desigualdade.
Finalmente, afirma-se que os jovens preferem contratos a prazo. Que valorizam a mobilidade e a liberdade de não estarem presos a um vínculo estável. Esta é a versão mais polida da violência neoliberal. A precariedade é romantizada como estilo de vida. O que se omite é que os mesmos jovens não conseguem acesso a crédito, não conseguem sair da casa dos pais, não conseguem planear o futuro. O que se vende como escolha é, na verdade, sobrevivência. Christophe Dejours já descreveu este fenómeno como sofrimento ético. Não é apenas a ausência de segurança que fere. É a perda de sentido. A impossibilidade de construir um percurso com dignidade.
O que vimos nas semanas que antecederam a greve foi a política do desprezo em ação. Um Governo que mente sem pudor, que recusa o diálogo, que distorce a história e que trata o protesto como ameaça. Mas a resposta dos trabalhadores foi clara. A greve não é um capricho. É um sinal. É uma recusa de baixar a cabeça perante o cinismo. E é, também, um aviso. Porque o poder que governa contra o povo pode durar. Mas nunca sem consequências.
Quando o pacto social é violado em nome da eficiência, o que resta aos cidadãos é a resistência. E quando a mentira se torna método de governação, a verdade torna-se uma forma de luta.
Porque os direitos não se agradecem. Exercem-se!
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