Num mundo onde a lucidez parece ter sido privatizada e o bom senso vive escondido sob a secretária de uma qualquer chefia intermédia, uma criança de seis anos continua a fazer perguntas mais pertinentes do que muitos comentadores pagos ao minuto. Mafalda não tem medo da sopa nem da guerra. Enfrenta ambas com a mesma expressão de desagrado. E por isso é revolucionária. Porque, no fundo, questiona tudo aquilo que os adultos normalizaram com resignação estatística.
O autor que desenhou consciências
Joaquín Salvador Lavado Tejón nasceu a 17 de julho de 1932, em Mendoza, Argentina, numa família de emigrantes andaluzes. Conhecido pelo mundo inteiro como Quino, herdou o gosto pelo desenho do tio Joaquín, também ele desenhador, que o introduziu no mundo da caricatura desde cedo. A alcunha “Quino” surgiu, aliás, para o distinguir do tio, e acabou por se tornar a assinatura internacional de um dos mais influentes autores de banda desenhada do século XX.
Órfão de mãe aos 13 anos e de pai aos 17, Quino encontrou no humor gráfico uma forma de expressão e sobrevivência emocional. Estudou Belas-Artes, mas abandonou a formação académica para se dedicar ao desenho humorístico, área onde desenvolveu um estilo inconfundível: um traço simples, mas altamente expressivo, e um humor que oscilava entre o terno e o corrosivo.
Durante os anos 50 e 60, colaborou com diversas publicações argentinas, até que em 1964 criou Mafalda, inicialmente como parte de uma campanha publicitária. O projeto publicitário falha, mas as tiras são aproveitadas pela revista Primera Plana e mais tarde pelo jornal El Mundo, onde rapidamente ganham popularidade.
Quino manteve a série de Mafalda entre 1964 e 1973, período em que publicou quase duas mil tiras. A certa altura, cansado da exposição e do formato seriado, decide encerrar a personagem, no auge da sua popularidade, mas nunca abdica do compromisso ético que a inspirou. Continuaria a publicar vinhetas satíricas e reflexões visuais sobre o mundo contemporâneo até à sua morte, em 30 de setembro de 2020.
Apesar de ter vivido parte da sua vida no exílio, primeiro em Milão e depois em Madrid e Buenos Aires, devido ao contexto político repressivo da América Latina, Quino nunca perdeu o vínculo com as causas sociais e democráticas. Era um humanista de traço fino, um libertário silencioso, e um dos primeiros homens do seu tempo a compreender que o feminismo não é uma questão de género, mas de justiça.
Recebeu inúmeras distinções ao longo da vida, incluindo o Prémio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades (2014) e a Legião de Honra francesa. Mas o maior legado de Quino não está nas medalhas: está nas consciências despertadas, nas crianças que passaram a desconfiar das ordens injustas, e nos adultos que, por vergonha ou saudade, se lembram de que um dia já pensaram como a Mafalda.
O homem feminista por detrás do traço
Quino foi um dos raros homens do seu tempo a assumir, sem folclore nem oportunismo, uma postura profundamente feminista. E não apenas pela criação de Mafalda, mas também pelas suas entrevistas, pelo lugar dado às mulheres nas suas tiras, e pelo modo como desmascarou o patriarcado quotidiano com um humor cirúrgico.
Mafalda não quer ser dona de casa. Recusa o destino que a sua amiga Susanita sonha com alegria provinciana, o de se casar com um “homem com um bom emprego” e ser mãe de três loirinhos. Mafalda sonha com a paz no mundo, com a justiça social, com a dignidade dos pobres, com um planeta que não rebente por excesso de ganância. E, sobretudo, sonha com um tempo em que as mulheres possam pensar antes de serem silenciadas.

Uma sociologia em quadradinhos
Mafalda não é uma banda desenhada infantil. É uma crónica política, filosófica e existencial disfarçada de tirinhas. Cada personagem representa um arquétipo social e a relação de Mafalda com os amigos diz muito sobre a sociedade: :
Manolito, o capitalista nato, herdeiro do armazém do pai, vê o lucro como missão de vida.
Susanita, a aspirante a dona de casa da classe média, carrega séculos de socialização machista em frases de criança.
Felipe, o sonhador culpado, é o símbolo do intelectual que hesita, que lê mais do que age.
Libertad, a anarca em miniatura, é a pulsão utópica, radical, impossível.
Mafalda, o centro crítico do grupo, funciona como uma consciência coletiva e observa-os a todos, com afeto e ironia, como se soubesse que são o espelho daquilo que a sociedade insiste em perpetuar. Aponta as incoerências do mundo com a desarmante honestidade das perguntas que os adultos já desistiram de fazer.
«A leitura da Mafalda deveria ser obrigatória nas escolas, mas não nas primárias, e sim nas universidades.»
— José Saramago«Mafalda é a heroína do nosso tempo.»
— Umberto Eco
A personagem que incomoda mais do que muitos tratados
Mafalda tem seis anos, cabelo desalinhado, um laço vermelho, e um mundo às costas. Não é apenas uma criança. É uma consciência. E é, talvez, a única criança da banda desenhada mundial que conseguiu sentar-se à mesa com os grandes pensadores do século XX sem baixar os olhos.
Mafalda representa muito mais do que a infância. É uma metáfora viva da recusa. Recusa da guerra, da hipocrisia, da desigualdade, da ignorância, da sopa, essa última, claro, como símbolo de tudo o que nos forçam a aceitar sem questionar. É uma personagem que pensa. Que luta com perguntas. Que obriga a repensar certezas.
Enquanto muitos personagens infantis foram desenhados para divertir ou ensinar boas maneiras, Mafalda foi desenhada para incomodar. E fá-lo com a delicadeza brutal das verdades simples. Diz aquilo que os adultos deixaram de conseguir dizer, não por falta de vocabulário, mas por excesso de conveniência.
Mafalda lê jornais, ouve as notícias, critica os políticos, discute geopolítica com o pai e feminismo com a mãe. Mas não é um “adulto em miniatura”. Continua a ter medo do escuro, continua a brincar, continua a imaginar um mundo melhor. É essa dualidade, entre o espanto infantil e a lucidez política, que a torna tão poderosa.
No fundo, Mafalda é o que acontece quando a infância não é silenciada. Quando uma criança se recusa a aceitar o mundo como ele está, e decide fazer as perguntas certas antes que seja tarde. Como escreveu Umberto Eco, ela é “a heroína do nosso tempo”, não porque vence os vilões com superpoderes, mas porque enfrenta o absurdo com coragem e inteligência.
José Saramago dizia, com a lucidez que lhe era habitual, que Mafalda deveria ser lida nas universidades. Não porque precise de ser “complexificada”, mas porque ensina a pensar de forma clara. Porque desmonta ideologias com perguntas simples. Porque ajuda a distinguir o que é natural do que é construído. E essa, convenhamos, é a essência da teoria crítica.
Mafalda é, nesse sentido, uma educadora. Não paternalista. Não panfletária. Mas profundamente ética. Ao contrário de muita literatura dita juvenil, não ensina a obedecer, ensina a desconfiar, a questionar, a ligar os pontos entre o pessoal e o político.
Num mundo onde se adestram crianças para obedecer a normas que os adultos já não explicam, Mafalda continua a ser um incómodo necessário. Não aceita a sopa da resignação, nem o menu fixo das verdades prontas. Questiona tudo: o papel das Nações Unidas, o sistema económico, o papel da mulher, a guerra, a religião institucional, o consumismo e até o planeta Terra, que carrega nos ombros como se o pudesse consertar.
Mafalda é filosofia de bolso. Sociologia de jornal. Feminismo de fala curta e olhar longo. A sua leitura não é só desejável: é urgente. Porque num mundo onde tanta coisa se diz “moderna”, continua a faltar aquilo que Mafalda mais exigia: coerência, justiça e coragem para mudar as coisas antes que rebentem de vez.
Sugestões de Leitura
Toda a Mafalda – Edição comemorativa dos 60 anos. Além das tiras originais, inclui textos de análise e imagens raras. Iguana, 2024
Mafalda: Feminino Singular – As tiras reunidas neste volume dão bem conta do caráter feminista desta criança que, aos seis anos, questiona o papel da mulher no mundo. Iguana, 2024.
Mafalda para Miúdos – Todas as alegrias e dificuldades de ser criança se encontram nesta compilação das tiras mais ternas, engraçadas, sonhadoras e inteligentes. Iguana, 2024
Se a Mafalda tivesse um partido político, eu votava nela. Porque diz o que pensa, faz perguntas certas e não tolera injustiças. Porque não se cala diante da guerra, da desigualdade ou da estupidez institucional. E porque, ao contrário de muitos políticos, Mafalda tem princípios em vez de patranhas.
Pagomes, Hangar Social
Este texto está excelente. Obrigada.
A Mafalda com resposta pronta. https://substack.com/@marytrust/note/c-113928205?r=5h39er