Cidadania* com Asterisco
Sobre vidas em suspenso, pertenças negadas e os mecanismos da exclusão em tempos de extremismo.
Esta é a segunda crónica de uma série dedicada aos alvos da extrema-direita em Portugal. Uma série que pretende não só denunciar, mas compreender as múltiplas formas de violência política, simbólica e institucional que se abatem sobre quem é sistematicamente colocado à margem. Perante a ascensão eleitoral de forças extremistas no Parlamento e o crescimento de um discurso público baseado na exclusão e na suspeição, é urgente olhar de frente para o que poderá acontecer caso estas forças assumam o poder com plenos instrumentos legislativos e executivos. O que se dissemina hoje como retórica e propaganda poderá, amanhã, transformar-se em norma institucional e prática governativa.
Hoje, em Portugal, assiste-se a uma crescente legitimação da exclusão com base na ideia de que a nacionalidade deve corresponder a uma identidade homogénea, imutável e culturalmente restrita. Esta ideia serve de base a um projeto político que pretende redefinir o que significa ser português, excluindo por princípio quem não corresponde ao ideal branco, europeu, católico e “originário“. A extrema-direita apresenta-se como a guardiã dessa identidade "ameaçada", e fá-lo espalhando a ideia de que o país está a ser infiltrado por elementos externos que consomem recursos, ameaçam valores e colocam em risco a segurança. A retórica do "nós contra eles" vai-se consolidando sob o disfarce do nacionalismo, da defesa da soberania e da ordem pública.
Se este projeto for concretizado a partir do poder, podemos esperar uma série de medidas políticas destinadas a reduzir drasticamente os direitos e a presença pública dos grupos racializados e culturalmente diversos. Propostas já em circulação indicam um endurecimento da Lei da Nacionalidade, condicionando, tendencialmente, o direito de cidadania à ascendência biológica. Poderá haver restrições ao reagrupamento familiar, à atribuição de subsídios e prestações sociais para pessoas com histórico migratório e um reforço das políticas de deportação e criminalização de imigrantes indocumentados.
Em contraste com a narrativa de ameaça disseminada pela extrema-direita, a realidade é clara: sem imigração, Portugal mergulharia numa crise demográfica e económica. Em 2024, os imigrantes representavam cerca de 15% da população, preenchendo lacunas críticas em sectores como a agricultura, construção civil e serviços. Contribuíram com mais de 2.600 milhões de euros para a Segurança Social, recebendo menos de 500 milhões em prestações. O saldo é positivo e vital. A imigração é, hoje, uma âncora para a sustentabilidade económica e para a própria viabilidade do Estado Social.
A ciência política mostra como as estratégias da extrema-direita se inserem numa lógica autoritária de exclusão institucional. Não se trata apenas de conquistar votos, mas de moldar o próprio campo do possível, aquilo que pode ou não ser dito, defendido, legalizado. A democracia liberal torna-se o meio para instaurar um regime de cidadania hierarquizada. O perigo não está só no discurso, está na tradução legislativa do preconceito em norma. Está na transformação do ódio em política de Estado. Este tipo de populismo autoritário utiliza mecanismos democráticos formais para instaurar uma ordem política que despreza o pluralismo. O Estado pode funcionar como instrumento de dominação de classe que, em tempos de crise, se reconfigura para preservar os interesses dominantes sob a aparência de neutralidade legal. A ascensão da extrema-direita representa precisamente essa reconfiguração: um endurecimento autoritário que procura canalizar o descontentamento popular contra os mais vulneráveis, desviando a atenção dos mecanismos estruturais de exploração. A democracia é corroída por um discurso securitário e moralista que legitima a exclusão sob a forma de defesa nacional e soberania. O populismo de direita, segundo esta perspectiva, não é um desvio, é uma resposta sistemática da ordem capitalista às suas próprias contradições. Em Portugal, o avanço deste modelo é visível nas propostas de revisão constitucional que pretendem limitar direitos e nas narrativas que atacam jornalistas, ONG e vozes críticas como traidores da pátria. O que hoje é exceção poderá, com apoio institucional, tornar-se regra.
Sociologicamente, assistimos à construção ativa de categorias de subcidadania. O que hoje são micro agressões e discursos estigmatizantes poderá, amanhã, ser políticas públicas formalizadas: escolas que evitam integrar histórias africanas no currículo, centros de saúde com filas diferenciadas para nacionais e estrangeiros, policiamento específico para bairros racializados. Tudo isto alimentado por uma máquina de comunicação que apela ao medo, à nostalgia e à moral conservadora. Estas formas de exclusão não são periféricas, são estruturantes. Estas práticas traduzem-se na transição de um Estado social para um Estado penal, onde a resposta à pobreza e à exclusão é a repressão em vez da inclusão. O neoliberalismo contemporâneo conjuga precarização laboral, retração dos serviços sociais e policiamento intensivo dos territórios populares, em particular os racializados. O discurso da meritocracia serve para legitimar políticas que criminalizam a sobrevivência. Em Portugal, esta tendência manifesta-se na ausência de estratégias integradas para os bairros ditos problemáticos, no reforço do policiamento em zonas racializadas e na culpabilização pública de comunidades inteiras pela degradação social. As categorias como "inadaptados", "dependentes" ou "suspeitos" não são espontâneas, são construídas e disseminadas para justificar políticas de contenção, segregação e abandono programado.
Do ponto de vista psicológico, os efeitos de uma sociedade que institucionaliza a exclusão são devastadores. A constante mensagem de que determinados corpos não pertencem gera sentimentos de humilhação, insegurança e medo. Ao institucionalizar a suspeição, o Estado cria cidadãos permanentemente sob vigilância, desconfiados, retraídos, desmobilizados. A cidadania com asterisco instala-se não apenas no papel, mas no comportamento diário de quem deixa de acreditar no seu direito à dignidade. O racismo institucionalizado não é apenas uma forma de opressão exterior, mas infiltra-se profundamente na subjetividade dos indivíduos, gerando alienação, autodesvalorização e conflitos internos. O sujeito racializado é forçado a ver-se através dos olhos do opressor, interiorizando a exclusão. Esta interiorização produz sintomas psíquicos duradouros, que comprometem não só o bem-estar individual, mas também a capacidade coletiva de resistência. A violência simbólica traduz-se numa erosão do tecido comunitário. A exclusão não é apenas uma questão de acesso a direitos, é uma experiência existencial de constante desvalorização, com efeitos intergeracionais. A reprodução da desigualdade assume, assim, uma dimensão total: política, simbólica, psíquica e afetiva.
A extrema-direita em Portugal está, neste momento, a construir as bases para esse futuro. Usa o Parlamento para testar propostas, os media para normalizar discursos, as redes sociais para amplificar ressentimentos. Ainda que sem maioria, já condiciona o debate, já empurra os partidos tradicionais para o terreno da concessão retórica. O perigo não é uma distopia futura, é um processo em curso, cuja aceleração depende apenas da chegada ao poder.
É neste contexto que escrevo este texto. Não como profecia, mas como análise crítica de um caminho já iniciado. Um caminho que, se não for travado, poderá levar à institucionalização de uma cidadania fragmentada, onde apenas os conformes são protegidos e os diferentes, descartáveis.
Defender a democracia, hoje, implica resistir ao discurso de exclusão enquanto ele ainda é discurso, antes que se torne lei.
Pagomes, Hangar Social